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No interior do Par, numa cidade chamada Melgao, h mulheres que nasceram com o dom da vida nas mos. Aparam meninos e meninas ao longo dos anos, no cotidiano do partejar. No carregam a pressa dos hospitais, apenas as marcas do tempo que lhe conferem a sabedoria para aprender a esperar. Foi esse universo impregnado de vida, e tambm de morte, que a antroploga brasiliense Soraya Fleischer conheceu de perto entre o incio de 2004 e final de 2005. Trocou de cenrio e at mesmo de hbitos para entender e compartilhar as histrias das parteiras.
Soraya conviveu com essas aparadeiras de crianas, acompanhou inmeros partos, ouviu relatos, jogou conversa fora, mergulhou no mundo dessas mulheres. O resultado virou o livro Parteiras, Buchudas e Aperreios - Uma etnografia do atendimento obsttrico no oficial em Melgao, Par, uma publicao da editora Paka-Tatu em parceria com a Edunisc. A seguir, voc confere uma entrevista com a autora sobre o trabalho e as relaes estabelecidas no perodo em que morou na localidade.
Confiana construda dia aps dia
P: O que a levou a penetrar nesse mundo das parteiras? E por que Melgao, especificamente?
R: Estava muito interessada em conhecer os ditos terapeutas populares, pessoas que cuidam da sade dos outros e no so necessariamente profissionais com diploma na mo. So pessoas com muita experincia prtica, com muita histria de vida e uma dose incrvel de disponibilidade para tentar resolver achaques alheios de sade. Fui parar no Par pela primeira vez e, em Melgao, mais especificamente, porque foi nessa cidade que os cursos da dcada de 1990 tiveram incio. O municpio, ento, tem uma experincia acumulada de visitas de gestores e profissionais de sade, indicadores para avaliao e, melhor de tudo, uma concentrao de parteiras ativas e dispostas a conversar sobre isso.
P: Depois do processo de pesquisa que resultou no livro, o que mudou no seu olhar?
R: Eu nunca antes tinha tido a chance de conhecer terapeutas populares e foi nos anos de 2000 a 2003 que tive a sorte de ouvir suas histrias de vida e de luta. Sou moa de cidade grande, cidade urbanizada em que todo mundo nasce em hospital. Mas, uma gerao antes, a gerao de meus pais nasceu com frequncia no mbito domstico, pelas mos de parteiras. Ento, realmente, uma mudana grande e muito rpida. Para mim, foi uma experincia muito rica ter conhecido o parto domiciliar feito por parteiras ribeirinhas. Mudou meu olhar sobre o parto, sobre as possibilidades de lugar e de atendimento na hora do parto e sobre o enorme significado da ateno bsica de sade oferecidas pelo SUS.
P: Pelo que se percebe no livro, voc teve muita receptividade das parteiras e da comunidade local. Como se construam essas relaes?
R: No tive uma relao de intimidade com todas as mulheres, eram muitas e tampouco era meu objetivo. Mas com dona Tabita, dona Maria, dona Zuleide, dona Jandira, dona Nenm, por exemplo, eu encontrava mais seguidamente e pude conversar sobre outros assuntos diferentes do partejar. Como qualquer relao humana, esse lao foi construdo dia a dia, aos poucos, devagarzinho mesmo. No incio, no sabiam quem eu era, de onde eu tinha vindo. Aos poucos, elas tambm foram me fazendo perguntas para saber de minha vida e entender porque eu estava ali h tanto tempo. Eu queria falar de muitos assuntos e conhec-las como mulheres daquele lugar e daquele tempo, para alm de s conhec-las como parteiras.
P: O livro trata, acima de tudo, da vida. Mas h agens em que o cheiro da morte se faz presente, como o momento em que voc relata um parto difcil, cuja gravidez no foi acompanhada pela parteira. A criana acabou nascendo morta. Como voc lidou com isso? E qual a atitude das parteiras nesses momentos?
R: Esse parto foi dificlimo. Muito triste mesmo. Fortemente recomendo que os leitores confiram essa histria no captulo 4 do livro. Essa mulher no tinha recebido o pr-natal das parteiras e, por conta disso, essas atendentes no sabiam da gravidade dessa gravidez. Era parto para hospital, como as parteiras costumavam classificar. Trs parteiras foram chamadas para ajudar e no foi possvel evitar a morte do beb durante o processo. O mdico da cidade foi chamado e fiquei chocada com a sua completa omisso no caso. Ali tive certeza de que, para muitas autoridades no Brasil, h diferentes tipos de cidados e h diferentes tipos de seres humanos, alguns, para essas autoridades, valem menos, tm suas vidas mais dispensveis.
P: Voc consegue definir quem so essas mulheres?
R: Em geral, no Brasil, as mulheres que trabalham como parteiras tm mais de 50 anos, foram atendidas por parteiras em seus partos, tiveram parteiras na famlia (sobretudo a me e a av materna), receberam alguma espcie de dom para trabalhar, tm esse dom reconhecido e demandado pelas pessoas de sua vizinhana e parentela. Mas h tambm parteiras bem mais jovens, que esto se iniciando na carreira, e as bem mais velhas, j septuagenrias e octogenrias que ainda so procuradas para atender. Em Melgao, poca da pesquisa, encontrei 22 parteiras atuando. Mais pesquisas so necessrias para conseguirmos pluralizar vrias definies do que constitui ser uma parteira.
LEIA
Parteiras, Buchudas e Aperreios Uma etnografia do atendimento obsttrico no oficial em Melgao, Par, de Soraya Fleischer. Onde encontrar: Editora Paka-Tatu.
(Dirio do Par)